Arqueólogos descobrem Stonehenge brasileiro

Um círculo de pedras no norte do Amapá guarda uma história intrigante sobre povos antigos da Amazônia.

Os raios de sol atravessam a pedra do Furo e inundam de luz o círculo cerimonial. Para os arqueólogos, o lugar era usado em datas astronômicas especiais - assim como o famoso sítio britânico de Stonehenge.

A madrugada é uma bênção. Essa é uma das poucas horas nessa região do Amapá, logo acima da linha do equador, em que o forte calor não impera. Nas redes espalhadas pela casa da fazenda que serve de abrigo aos pesquisadores, reina um conforto preguiçoso. A noite chuvosa, contudo, deixa a equipe apreensiva. Afinal, a viagem até o sítio arqueológico Rego Grande só tem um objetivo: observar os caminhos do Sol no céu durante o solstício de dezembro no lugar que, não à toa, ficou conhecido como o "Stonehenge brasileiro". A chuva, portanto, não era bem-vinda.

O sítio Rego Grande, que recebeu o nome do igarapé que o margeia, é formado por mais de uma centena de blocos de granito. Assim como o Stonehenge britânico, um dos mais intrigantes sítios neolíticos do mundo, ele também deve ter sido especial em seu tempo, quando foi palco de cerimônias repletas de oferendas, algumas de caráter astronômico. Lá e cá, ambos os lugares foram usados em festas e cultos, e são obra da vontade de seus construtores em marcar a paisagem de maneira concreta. O Rego Grande, contudo, data de mil anos, enquanto o Stonehenge remonta a cerca de 4,5 mil anos.


A presença de megálitos em várias regiões do planeta, e ao longo de muitos períodos da história, reforça a curiosidade sobre a semelhança entre os dois sítios. "O megalitismo dispersou-se em épocas diferentes. Foi um fenômeno global", diz o português Manuel Calado, da Universidade de Lisboa, especialista nessa área da arqueologia que estuda os monumentos de pedra.

Com mais de 30 metros de diâmetro, a estrutura quase circular do Rego Grande foi idealizada no topo de uma colina, em um trecho que fica no limite entre os campos alagados do litoral e áreas de savana. "Assim como a paraense ilha de Marajó, o Amapá era um dos maiores centros de inovação cultural da Amazônia", diz Stéphen Rostain, arqueólogo francês que estuda sítios na Guiana Francesa há quase 20 anos. De fato, nos dois lados da foz do maior rio do mundo, a exuberância e a diversidade dos estilos cerâmicos demonstram que, no passado, múltiplas culturas interagiram na região, deixando ali um imenso patrimônio arqueológico. A proximidade entre a costa amapaense e o arquipélago de Marajó, usufruída pela população atual, também serviu de elo entre os povos indígenas pré-coloniais. A margem esquerda da foz do Amazonas e o sistema insular do Marajó, com sua grande diversidade de ambientes e enorme rede fluvial, talvez tenham incentivado amplas redes de troca, criando contextos de desenvolvimento cultural que ainda hoje desafiam nossa compreensão.

Na varanda da casa de madeira, onde passamos apreensivos aquela noite chuvosa, o clima agora é de euforia. O céu claro promete sol, mas a data marca a chegada da estação das chuvas - que ali se inicia em dezembro e se estende até julho. O solstício era também uma ocasião má-gica escolhida para diversas celebrações por índios que viviam no âmbito da foz do Amazonas entre os séculos 1 e 18, muitos dos quais habitantes da costa norte do Amapá e parte do litoral do território da atual Guiana Francesa. Nessa região, o Projeto de Investigação Arqueológica na Bacia do Rio Calçoene, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), estuda o que sobrou da vida desse povo. E o sítio Rego Grande é parte importante da história.

Os monumentos de pedra dispersos ao longo do litoral amapaense, entre os rios Araguari e Oiapoque, foram observados pela primeira vez no fim do século 19. Depois, Curt Nimuendajú, etnólogo alemão que percorreu o Amapá na década de 1920, também registrou mais de uma dezena deles. Na década de 50, Betty Meggers e Clifford Evans, americanos que marcaram a arqueologia amazônica ao propor um quadro histórico da ocupação indígena na foz do rio Amazonas, sugeriram que esses locais deviam ser centros cerimoniais, construídos por índios originários da região circuncaribenha.


Ao longo de todo esse litoral, até Caiena, capital da Guiana Francesa, se espalham sítios arqueológicos com um elemento comum: uma cerâmica elaborada, ora pintada com delicados desenhos vermelhos sobre um fundo branco, ora gravada com incisões feitas na argila ainda úmida. Betty Meggers e Clifford Evans chamaram esse estilo cerâmico de aristé. Em escavação recente em uma antiga aldeia indígena 50 quilômetros ao sul do Rego Grande, no Retiro do Padre, alguns fragmentos dessa cerâmica foram recolhidos. Nenhum deles tinha o vigor da decoração das peças clássicas aristés, mas as técnicas de manufatura, a seleção da argila e as formas dos vasos eram do mesmo tipo.

O Retiro do Padre era uma aldeia pequena, com duas ou três casas identificadas pela observação de manchas no solo que marcam os lugares em que os esteios das moradias estavam fincados. Nas lixeiras, além dos fragmentos miúdos de panelas quebradas, restam caroços queimados de palmeiras frutíferas, como o açaí e o tucumã, abundantes por toda a região - um lixo recolhido ao redor de fogueiras e descartado na periferia da aldeia. No entorno do sítio, sobre outras colinas, há mais vestígios de povoações. "Tem muita coisa perdida nesses morros", conta Alzira Souza, esposa do capataz da fazenda, quando lhe mostramos uma lâmina de machado de pedra encontrada na escavação.

Ao mesmo tempo que exploravam seu território, os índios constituíam mitos para explicá-lo. Figuras de animais representados nas cerâmicas apontam cosmologias cheias de relações entre seres humanos e animais, em uma interação que ainda hoje caracteriza o ideário indígena amazônico. Diferente do pensamento moderno ocidental, que separa homens e animais, o chamado "perspectivismo ameríndio" aponta para uma fluidez das formas humanas e não humanas que não se encaixa na distinção entre cultura e natureza. A mistura dos motivos animais e humanos sugere, em vários potes, personagens híbridos.

Cobras, sapos e lagartos, aves e macacos, além de corpos e rostos humanos, são figuras recorrentes nos potes cerâmicos, funerários ou não. No Rego Grande, os vasos com desenhos de répteis foram colocados em meio a blocos de granito, enquanto aqueles com aves estavam no interior do monumento, afastados das pedras. Mais que uma mimese do hábitat animal, essas práticas organizam e manipulam um jeito próprio de dar sentido ao mundo, construindo lugares em que a memória do grupo fica inscrita.

A construção dos megálitos é também parte dessa apropriação da paisagem, ou seja, da transformação de conhecimentos abstratos, de histórias orais, em estruturas concretas. Mil anos depois, nós caminhamos de novo sobre o chão que os índios pisaram, à espera do alvorecer do dia do solstício. Na noite escura, percorremos os 300 metros que separam a casa de madeira do sítio Rego Grande, sentindo a umidade do capim molhado da chuva entrando nos sapatos. A colina onde está o sítio se destaca no relevo. É uma caminhada tranquila até o alto e, ao longo dos quase quatro anos de pesquisa no local, são incontáveis as vezes em que subimos para alcançar o topo onde as pedras foram colocadas. Mesmo assim, a cada vez a sensação se repete: a expectativa dos blocos ganhando dimensão, e o círculo aparecendo, impõe reverência. Sempre uma emoção nova toma conta de nós.

O trabalho na construção dos monumentos de pedra exigiu não apenas força bruta mas também organização e controle político. Foi necessária a coesão de muitas pessoas, além de liderança forte para reuni-las e convencê-las de que o esforço valia a pena. Encontrar os blocos não devia ser tarefa fácil. Muitos certamente já estavam soltos sobre os afloramentos, mas as cicatrizes encontradas em alguns lajedos mostram que vários blocos tiveram de ser extraídos. As ferramentas e as técnicas empregadas são desconhecidas, mas detalhes nos megálitos sugerem que os índios aproveitaram falhas na base das pedras para retirá-las. Uma vez soltos, os blocos eram carregados até o topo das colinas - alguns podem pesar mais de 4 toneladas -, onde um esforço de engenharia acontecia. A presença de jazidas de pedra com cicatrizes, além de outras dispostas na beira de rios, indica que parte do transporte dos blocos era feita em embarcações. As pedras não eram apenas fincadas no chão. O cuidado na fixação delas, com uso de outras menores para calçar os megálitos em posições definidas, exigiu planejamento e sabedoria.

Os megálitos foram idealizados por volta do ano 1000, quando alguma coisa aconteceu na vida daquele povo. Em algum momento houve o ímpeto de construir essas estruturas que transformariam para sempre a composição das paisagens. Diferentemente das aldeias, os monumentos de pedra não perecem - e seus arquitetos bem sabiam disso. Uma vez concebidos, eles passam a ser alvo do interesse de muitas gerações posteriores, que talvez os ampliem e modifiquem, repetindo práticas que, como em todas as culturas, reforçam e constroem identidades.

As escavações no Rego Grande, iniciadas em 2006, mostram isso: um local muito visitado e alterado. Centenas de potes cerâmicos foram levados até lá. Alguns eram de fato urnas funerárias, onde os ossos, em certos casos cremados, eram guardados. Mas a maior parte é de bacias, vasos, pratos e tigelas que serviram como oferendas, talvez aos mortos. Alguns potes eram deixados sobre os blocos, onde acabaram partidos ao rigor do clima. Outros foram quebrados de propósito mesmo - jogados dentro dos poços funerários. Mas há também potes inteiros, enterrados em pequenas valas ou arranjados em volta de urnas funerárias, dentro dos poços. A maior parte das vasilhas não tem sequer marcas de uso, como se tivessem sido produzidas com um único fim: servirem de oferta ao monumento.



Havia com certeza um controle do uso daquele espaço, regras a serem seguidas e datas para celebrações. As urnas funerárias encontradas mostram que nem todas as pessoas recebiam o mesmo tratamento após a morte. "O número limitado de urnas pode indicar que esses funerais eram reservados a pessoas de alto status, como chefes tribais ou de clãs", sustenta o arqueólogo francês Rostain, que pesquisou intensamente a margem esquerda do rio Oiapoque. Para ele, esses grupos estavam organizados em "uma confederação com um chefe soberano", indicando núcleos sociais hierarquizados que diferem das sociedades indígenas atuais na região.

É possível que as hierarquias desses grupos não fossem permanentes, ficando fortalecidas em tempos de guerra ou em datas importantes, como antropólogos já sugeriram ao explicar a história de grupos indígenas atuais, entre eles os palikurs, que vivem hoje na região do Baixo Oiapoque. De acordo com essa teoria, pequenas aldeias independentes acabariam reunidas, em momentos específicos, sob a liderança de figuras eminentes no cenário regional, juntando esforços para construir, por exemplo, monumentos como o Rego Grande. O mesmo lugar em que nós estávamos, naquela manhã após a chuva.

O Sol desponta no horizonte, exatamente no ponto mais austral de sua rota cíclica anual entre os dois hemisférios. O solstício se anuncia. Então, uma viagem no tempo, uma volta ao mundo dos povos que sedimentaram o sítio se materializa sobre os blocos de rocha inclinados a nosso redor. De novo, surgem as questões que tanto nos motivam: quem foram eles? Como viviam? Como experienciavam o solstício?

Os antigos nos legaram os megálitos. E, naquele instante, a presença das rochas causa em nós uma estranha sensação de companhia.

Fonte:
http://viajeaqui.abril.com.br

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